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Por um Minc não careta ou três tempos/visões da cultura e política cultural brasileira

Aviso: esse texto contém simplificações. De ideias, de linhas políticas e da atuação de órgãos públicos. Mas é proposital por ele ser ilustrativo do que acho que são as três principais visões mais gerais de cultura brasileira/política cultural que co-existem  e se enfrentam, por exemplo, nos debates que surgem com a posse de Ana de Hollanda, e de certa forma do pensamento do PT de forma mais direta, no Ministério da Cultura (Minc).

Depois se for o caso escrevo um mais a sério e menos galhofeiro.

Eu as situei no tempo/espectro político/visão de cultura brasileira de cada uma delas.

Todas existem até hoje. Mas cada uma tem seu próprio tempo.

Vale só mais um aviso. Provavelmente a melhor política pública para a cultura possível conteria todas as concepções e tipos de projeto com que eu brinco abaixo…por mais que eles sejam diferentes entre si.

A Belle Époque Tucana (pré 1922)

Acreditam que a misssão de uma secretaria de cultura é elevar o “nível cultural” da população. Para isso devem “levar” a “boa” cultura, principalmente pelo seu efeito civilizador. Uma coisa de inspiração quase jesuítica.

Osesp em ação: o melhor projeto cultural brasileiro por poder ser de qualquer lugar do mundo

Alguns não tem certeza se vale a pena mesmo financiar uma cultura brasileira e reservadamente revelam receios de que exista, ou que valha a pena se ufanar de algo como uma cultura brasileira.

Falam em “marketing cultural”, e deixar morrer iniciativas culturais que “não sabem sobreviver no mercado”, embora sua política seja ótima para canalizar rescursos públicos para o que já poderiam sobreviver de qualquer jeito no mercado. Reconhecem a necessidade de fomento, universalização e circulação das artes clássicas, que tem dificuldade para sobreviver nesse país tropical. Música clássica e balé clássico. Sem modernismos.

Consideram a Osesp o melhor projeto de cultura do Brasil. É uma orquestra cara, de nível internacional, com músicos internacionais, maestro internacional, que poderia ser de qualquer país de primeiro mundo, faz turnês e gravações internacionais. Você assiste e nem diz que é de São Paulo: poderia ser de Boston, Berlim, Milão, não dá nem para sentir o cheiro do lixo da Cracolândia em volta. Por isso mesmo a consideram o melhor projeto cultural do Brasil.

Gozo mesmo são projetos que “levam cultura” para as favelas. Como se a favela não tivesse cultura. De preferência, aqueles que fantasiam as crianças de meninos de Viena, cantando ou tocando músicas clássicas. (Aviso: não é crítica a existência e financiamento de projetos assim em si ou do acesso de qualquer um à música clássica )

Os tucanos confundem gestor de políticas culturais com eruditos, ou ao menos, quem sabe apreciar uma boa ópera. Claúdia Costim, Francisco Weffort, João Sayad e Andrea Matarazzo, por exemplo, nenhum oriundo da área cultural (respectivamente gestão e energia, ciências políticas, banqueiro e…deixa para lá). Mas todos muito cultos e de bom gosto. Jamais são demitidos (aliás, secretário/ministro da Cultura raramente o é).

A versatilidade de Matarazzo

Vale ler esta entrevista do Matarazzo, novo secretário de Cultura de São Paulo e sua leitura das políticas públicas de cultura e ver esse vídeo do simpático  Weffort para o projeto Produção  Cultural (que admite sua dificuldade com o cargo, e faz homenagem ao legado do gigante Mário de Andrade, que é realmente quem projeta junto com o “irmão”(sic) Oswald sua sombra sobre tudo isso)

O nacional-desenvolvimentismo petista (até 1967) ³

Há uma cultura nacional. Há tradições nacionais. Há artistas. E é preciso protegê-los! São frágeis, os coitados…Da cultura de massa, das misturas que eliminam a pureza do samba, e fomentar os artistas que defendem a nossa verdadeira cultura.

Vai dizer que o samba em si nasceu de uma mistura de música da Europa com tradições africanas e que em seus primórdios foi perseguido e tratado com o mesmo desdém que os puristas hoje tratam as novas manifestações miscigenadas e periféricas de “preto, de pobre, de favelado”. Eles te interrompem antes que acabe.

Vai dizer que existem coisas para serem protegidas, que existem tradições para serem preservadas, mas que reserva de mercado e isolacionismo não protegem a vitalidade de uma cultura fundada na antropofagia (só a tiram do seu tempo, da modernidade). Por isso que ataques contra o Creative Commons baseado em sua origem em um acadêmico nos Estados Unidos (bold e vermelho) faz sentido em certos meios como “denúncia” e defeito de origem.


Gil no seu pior momento: na passeata contra a guitarra elétrica em 1967!

Claro que tradições devem ser preservadas. Mas vai dizer que “fossilizar” pessoas e comunidades é infantilizar, tratar o outro como objeto de museu, animal no zoológico cultural, e não dialogar como igual. Elas tem que ser vivas e insumos, fortalecidas não vitimizadas, não formol e farsa de si mesmas enquanto manifestações culturais.

O “nacional-desenvolvimentismo cultural” reconhece o valor das manifestações populares. Desde que nas regras quase do folclore.  Pobre pode. De sandália de coro. De Rider, não!

O nacional-desenvolvimentismo cultural é obviamente mais setorial, mais ligado a classe artística existente, e ao proteger o setor, acaba as vezes por extensão protegendo um modelo comercial, corporativo e cartorial de cultura.Ele protege o que existe porque é mais defensivo que propositivo. O que é novo não tem corporação para defendê-lo.

Nesse modelo existem os artistas e os não artistas. Os que produzem e os que consomem cultura. E os que produzem são proprietários exclusivos de sua obra, que, para deixarmos claro, é entendida como propriedade. Sem inflexões.

Por se assentar no que existe, não no que está nascendo, tem apoio da classe artística estabelecida e representada simbolicamente e de forma setorial em partidos. Mas a cultura não é uma classe, ou de uma classe. E embora o artista, o criador, seja uma figura especial e essencial da cultura, ele não é seu centro, porque não há centro nesse universo, e o criador não é algo que exista fora de um sistema.

Digo isso por causa do discurso da posse de Ana de Hollanda. Tem coisas legais, tem coisas ambíguas, tem coisas que eu acho ruim, mas a ideia da “pessoa que cria”, essa ideia de um ser artista “mágico” não é base para política pública, é uma representação simbólica que um setor profissional cria para si mesmo. É mais ou menos como dizer que toda a política de esporte deve ser voltada para esporte profissional e não para a prática de atividades físicas de forma mais ampla (aliás, é assim mesmo no Brasil, né?).

A política ideal agora é fomentar e fazer circular os artistas brasileiros chancelados e estabelecidos como sua excelência, “o criador”,  pelo país (e eu até acho que artistas mesmo são pessoas especiais). Não é por acaso que o modelo ideal aqui é o Projeto Pixinguinha, que subvenciona shows de música.

Existe outros trechos do discurso de posse da nova ministra que me deixam com receio. Ela critica a antiga gestão nessa passagem:

“Visões gerais da questão cultural brasileira, discutindo estruturas e sistemas, muitas vezes obscurecem – e parecem até anular – a figura do criador e o processo criativo.”

Bizarro alguém achar que está concluída, ou não é fundamental, que a principal e mais produtiva forma de intervenção de um Ministério da Cultura incipiente no Brasil não seja criando sistemas e estruturas (por exemplo, estruturando, dando apoio e formação para políticas e redes de secretarias estaduais e municipais de cultura, ou suas relações com o sistema de educação).  E não é que essa preocupação obscurece ou anula o “criador”. Ela o contextualiza! (por exemplo, a necessidade de se pensar formação de público e vocações artísticas e relação não só com o MEC, mas também com o Ministério das Comunicações e Ciência e Tecnologia…)

O discurso indica que na visão nacional-desenvolvimentista irá se fomentar aquilo que existe, mas não se percebe que irá se perder a chance de se criar condições para aquilo que poderia ser (e que provavelmente será de qualquer jeito, aliás, já é, mas será apesar ao invés de com a ajuda do Minc)!

Como mais ou menos disse o amigo Rodrigo Savazoni @rodrigosavazoni (que de resto, não tem “culpa” por esse texto) ela aponta um ministério ligado às raízes do Brasil (grande vô Sérgio!) quando o passo além que o país precisa hoje é de redes (até mesmo para as raízes se espalharem)!

O tropicalismo/manguebit da dupla Gil e Juca (pós 1967)

O tropicalismo se voltou ao modernismo e a antropofagia para atualizá-los nos anos 60 para o mundo da cultura de massa, dos jovens, do rock. Mantendo a cultura brasileira com sua capacidade de sempre se renovar não sendo aquele menino que não desenvolve anti-corpos ao não brincar com os outros na rua, mas por ser aquele que faz do seu jeito também as brincadeiras dos outros. O manguebit veio para atualizar o tropicalismo para a era digital. Eu lembro da primeira vez que vi Chico Science. Não entendi nada! O manguebit era tão moderno que então foi “traduzido” errado pela imprensa, que o entendeu e rebatizou como beat de batida e não bit de tecnologia.

“Computadores fazem arte” – profético! Imagina se isso fosse entendido como política cultural-educacional na época em que isso foi cantado (a música foi lançada em 1994)

O Minc de Gil/Juca, é preciso dizer, foi um acaso, quase um erro, uma “falha” no sistema político…Surge do vazio deixado por Weffort, que permitia tudo, com um vazio no debate público e dos interesses politiqueiros em um Ministério da Cultura. Acharam que estavam dando o Minc para os “artistas”. E o pessoal lá fez “arte”!

Permitiu-se criar um ministério novo, garantido pela legitimidade de Gil, e,  sem muita gente para defender algum status quo consolidado internamente (exceção da questão da lei Rouanet e do audiovisual, que não era pouca gente…). E é preciso dizer que como tão novo, cometeu erros, claro, e talvez o maior dele foi não perceber a urgência do tempo contida na sua própria excepcionalidade, na sua liberdade e falta de apoio político (que depois da saída do Gil, foi apenas o compromisso do Lula com o ex-ministro) para aproveitar a oportunidade e consolidar, comunicar e sintetizar os avanços, ou partir para um tudo ou nada em grandes batalhas contra forças estabelecidas (da Lei Rouanet e dos direitos autorais), que talvez fossem perdidas de qualquer jeito.

O espaço foi conquistado pelo novo, pela descentralização, por abrir a cultura a quem não era tradicionalmente do meio, em formas transversais de apoio (os pontos de cultura, cultura digital) que não tinham a ver com as caixinhas setoriais anteriores dos criativos de profissão (sem querer desmerecê-las). Diga-se de passagem, hoje o ministério é bem mais compreendido do que antes.

A descentralização do eixo Rio-São Paulo (na realidade, dos bairros ricos de Rio São Paulo), a criação de redes, sua ampliação e apoio, não é favor, não é lateral, não é secundária em uma política cultural brasileira. Ela é CENTRAL na criação de novos modelos e manifestações artísticas na cultura brasileira. Ela sim se alinha com as demais políticas de redução das desigualdades sociais.

A política do Minc não deve ser o gasto de energia para manter a velha estrutura de Ecads e afins. Na opção de onde alocar esforços, vale mais se posicionar para desenvolver o novo do que ficar a defender velhas estruturas (não confundir aí, velhas estruturas com manifestações culturais tradicionais, indústria cultural ou economia criativa, todas fundamentais).

A periferia, as redes, as novas e mais baratas formas de criação e re-criação de cultura são a chance do Brasil se colocar melhor como um dos nós das redes globais que dialogam cultura, ao mesmo tempo que resolve suas carências históricas com a população mais pobre de forma livre, pagando menos pedágios de copyright.  Fomentar as redes internas, fomentar a cultura, não só dividida em produção e consumo, mas no novo modelo onde todos somos produtores/emissores/filtros de cultura (sempre fomos, isso só explicita). E criar e nos preparar para os pontos de diálogo dela com o mundo, com as periferias e centros espalhados seja nos países ricos (que também tem suas periferias) ou nos pobres do mundo (que também seus centros ricos de cultura “clássica”, “cosmopolita” ou o escambau) .

Isso não é “em tese”. Isso já acontece, esse é o mundo de hoje. Só para ficar em exemplos fáceis a “exportação” (globalização, digamos assim) dos “periféricos” Seu Jorge, osgemeos e Vik Muniz; a formação de redes do hip-hop, da Central Única de Favelas e das bandas independentes do Fora do Eixo; os novos modelos de negócios na música nas cenas de funk e brega, do carnaval entre amador e profissional dos blocos das ruas cariocas, de quem o Ecad quer cobrar direito autoral e etc…A vitalidade em todas as artes cada vez mais emergindo de fora do eixo Rio-São Paulo!

Esse é o agora! O que, como disse antes, não impede que todas as outras linhas de política cultural brasileira não estejam também contempladas.

A questão básica é que uma cultura tão “espontaneamente complexa” como a brasileira não pode ter um Ministério da Cultura que pense pequeno ou seja careta.

Logo criado por @barbaraszanieck para a campanha para que o Minc continue a ter um olhar inovador sobre a questão dos direitos autorais. Saiba mais

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Uma noite em 67 – rápidos comentários

Acabei de assistir o documentário “Uma noite em 67” de Renato Terra e Ricardo Calil, sobre a final do III Festival de Música Popular Brasileira, promovido pela TV Record.

O documentário é tão gostoso de se ver que vale aqui o comentário de que o texto contém “spoilers”.

Primeiro comentário: o filme começa brilhantemente lembrando que aquilo era produzido para a TV. Ou seja, era um espetáculo, e era parte das telecomunicações “realmente” de massa do Brasil do “avanço industrial” que Tom Zé ainda cantaria. Ou seja, era parte da cultura pop, que Caetano já entendia.

Segundo comentário: o filme tem o mérito de respeitar e valorizar o material original, “direto”, de época. Ao tratá-lo e dar a ele o espaço e tempo que merece. Não tem edição idiota, ela é muito fina. E os comentários e entrevistas atuais são muito bem feitas, pontuadas e bem colocadas. Não há material gratuito e o ritmo do filme anda muito bem.

Dessa maneira uma história que já está contada e publicizada em muitas fontes (os livros de Caetano e do Zuza Homem de Melo, as imagens de arquivo mais conhecidas, principalmente os números musicais etc…), tem o mérito de aparecer reunida, viva, próxima e organizada. A gente sabe da história do violão quebrado por Sérgio Ricardo. E do tropicalismo surgindo. Mas ali fica claro que foi tudo tão próximo. E fica compreensível o contexto onde tudo aconteceu.

O título também é ótimo porque ao “diminuir” como uma mera noite em 67, amplia, porque tudo aquilo aconteceu na mesma noite em 67. E como diz um dos entrevistados, só depois se foi perceber que aquilo foi histórico. Foi preciso a história acontecer, aqueles personagens crescerem, para aquilo se tornar um ponto de inflexão da nossa música. Ou seja, o que faz o momento histórico é o que acontece e como o vemos depois dele 🙂

E tudo isso com uma dimensão humana, e as discussões políticas e estéticas de forma clara e viva. Isso é o mais impressionante do filme. Tudo é muito vivo,principalmente as entrevistas da época. Elas são conduzidas de forma tão leviana e despreparada, que revelam mais a história do que seríamos capazes ao tratá-la com reverência. Os questionamentos e reações são impagáveis.

Terceiro comentário: Há um “subtema” importante no filme. Um amigo achou que ele dá uma “caída” no final quando “Ponteio” de Edu Lobo ganha. Afinal, embora uma bela música, ela é um clássico “menor” que “Roda Viva”, “Alegria, Alegria” e “Domingo no Parque”. E Edu Lobo é mestre, mas menos icônico que Chico, Caetano, Gil ou Roberto. Discordo, e acho bonito o fim com o Edu, não só por manter a estrutura proposta. Mas porque tem um outro tema na trajetória do filme. Ele começa com Sérgio Ricardo, que se revolta com a platéia, não aguenta a pressão. Passa por Roberto Carlos rapidamente. É importante notar que a participação dele no festival não é tão importante nem na carreira dele, nem na história dos festivais. O que sobressai dele? O total domínio e tranquilidade no palco, mesmo sob vaias, uma tranquilidade como artista. Daí vem Gil, Caetano e Chico e como todos lidam com sua imagem e com aquele embate. Principalmente Gil, sua angústia e sua quase não participação no festival. Quase que Gil não foi “fazer a revolução” na música brasileira, quando o tropicalismo permite que nossa música possa ser jovem e sempre se renovar com o estrangeiro. E Edu Lobo? O que sobressai dele? Sobressai o desgosto em ser um artista da MPoPB na era da cultura de massas. Do peso daquela imagem, das disputas políticas, de ser porta-voz e ícone, de ser uma figura quase do “folclore nacional” pegando o termo emprestado do Pedro Alexandre Sanches quando fala do Roberto. Edu Lobo “só” queria ser músico. Não um personagem do espetáculo da música na era da TV, da comunicação de massa.

Enfim…vamos acabando por aqui que o que eu escrevi e apaguei é um pouco viagem demais. Vale a pena ver o filme que é uma manifestação muito viva da música, da cultura, da paixão e de artistas fantásticos, surgindo ainda em um momento quase ingênuo, com os artistas ainda jovens e inseguros, e antes do AI-5 e do período mais brabo após 1968.

Emocionante.

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